Pedro Minet: como se a beleza fosse uma radiação
Nos versos finais de Ode à uma Urna Grega, o poeta John Keats afirma que “A beleza/É verdade, a verdade beleza”. Pedro Minet é um escritor que escava fundo a beleza-verdade para encontrar a imundície por baixo dela. Seu livro de estreia, de nome Coleção de Meninos Mortos, é uma obra que eu descreveria como composta por espelhos e fumaça. A cada verso Minet refrata e nubla a sala cheia de corpos inertes para a qual ele convidou você. Você pode se deixar enganar pelo cintilar de seus meninos e pelo o que de turvo vem enganar os seus olhos ou você pode respirar fundo e farejar o podre que adensa o ar.
Para a comemoração de um ano de lançamento de sua Coleção, eu entrevistei Minet por quase duas horas de ligação. Não me surpreendi ao saber que ao invés do que afirmaria sua reputação de twink fatale, Pedro conduz a si mesmo com bastante timidez e candura. Conversamos sobre as armadilhas da liberdade sexual, inteligência artificial e o que constitui seu minetcore.
matheus dos santos: O que você entende que constitui o arquétipo, ou a persona sexual, do menino morto?
Pedro Minet: Quando você fala do “menino morto” vem mil coisas na minha cabeça, porque eu começo a pensar no que seria um protagonista de um poema do Pedro Minet e se isso seria por via de regra um menino morto, porque eles tendem a seguir à risca um certo arquétipo que eu acho que já virou quase um vício, ou até uma “brand”. Sei lá, essa coisa de feminilidade e passividade. Mas como você falou em persona sexual eu lembrei do ensaio do Personas Sexuais da Camille Paglia chamado “The Beautiful Boy as Destroyer”. Esse foi um texto formativo para mim e nele a Paglia fala do Tadzio e do Dorian Gray e constrói esse arquétipo de rapaz belo fatal que é apolíneo porque é tão disciplinado e austero mas ao mesmo tempo tem algo de desintegrar o mundo moral e racional, então acaba sendo dionisíaco também. Bivalente, andrógino não porque é tão feminino quanto masculino mas porque não é suficientemente nada, sempre aquém de realmente tomar forma. Mas tem mais de um menino morto no livro, eles não são todos iguais. Eu não sei se ele chega a ser um arquétipo.
ms: E o que você entende que ele é então?
PM: Acho que ele não é nada, ainda pelo menos. Ele é meio que a falta de um menino. Ou talvez o “ser menino” em si tenha algo de falta? É muito fácil dizer o que é uma menina, só ver a febre do “girlhood”, “girl” isso, “girl” aquilo, recentemente, até porque meninas estão constantemente nessa posição de serem olhadas e se constituírem em reação a esse olhar. Mas o imaginário da “boyhood” tem algo de morto quase por definição, um vácuo mesmo, acho que porque o mito do menino tende a ser sobre ele acabar se tornando um homem que vai olhar os outros, nunca ser olhado. Daí o Matheus (Ultra) dizer no prefácio do Coleção que meus meninos são “feminilizados”, um leitor esses dias me chamou de “Sofia Coppola for boys”, acho que porque eu tento traçar tanto na escrita quanto no meu Instagram e tal esse visual para uma “meninohood” vista de fora e por si mesma que é quase como caçar fantasmas. Porque eu acho que essa objetificação acontece e muito, especialmente no contexto homo, mas falta muito um corpo de referências e “mitos” e ícones pra você se apegar e identificar e usar para processar sua experiência, o que é bastante doloroso. Em parte o ímpeto de escrever algo como o Coleção era de criar o que eu gostaria que estivesse disponível pra mim quando me sentia muito sem voz. Para além disso, a morte no livro tem muitos caminhos, você tem ali meninos literalmente mortos, outros com uma pulsão de morte sexual autodestrutiva, mas acho que no cerne tem uma relação forte com aquele ditado de que “morto não fala”. O menino morto seria um menino objetificado, mas não de forma puramente sexual. É um menino que as pessoas não entendem ou não querem entender, seja um ícone virtual ou um garoto vislumbrado e perseguido no shopping ou um Eduardo Flores bode expiatório de homofobia sistemática, então ele seria um objeto na medida em que ele não tem linguagem nesse mundo. Mas eu sinto que de certa forma, com esse livro, eu estou “positivando” essa morte dele. O que você acha que seria um menino morto?
ms: Eu acho que o menino morto é uma não-subjetividade. Eu não acho que ele é algo factível que existe. Ele é um processo que é lançado em alguém. Não se nasce um menino morto, se torna.
PM: Eu acho que de certa forma, depois que esse processo começa, a referência dele é esse processo. Ele tem que construir a subjetividade dele a partir desse processo de abjeção. Eu acho que é sobre talvez sair do objeto mas não ir para o sujeito necessariamente. Ele nunca consegue sair dessa posição de objeto, isso é tudo que ele tem, então como ele vai construir a subjetividade dele, como ele vai falar? Porque parar de ser objeto e se tornar sujeito é apagar a perspectiva dele, talvez até transferir a violência da objetificação de si pros outros. Acho que é muito sobre tentar ir além da dicotomia objeto e sujeito. Para mim não é o suficiente apenas tirar ele dessa posição de objeto. Acho mais importante tentar dar vida a esse objeto morto enquanto objeto, enquanto morto. Sem querer transformar ele num “menino de verdade”, necessariamente. Mais ainda, acho que é sobre descer à morte com ele. É muito estranho isso que eu tô falando?
ms: Não. Parece uma mistura de Pinóquio com Orfeu.
PM: Sei lá, acho que é mais sobre Eurídice do que Orfeu. Porque quem é levada pro Hades, quem fica no Hades é ela. Mas esse processo do menino morto tem isso de descer ao Hades para estar e conversar com ele e não virar as costas. Talvez o leitor seja o Orfeu. Mas sim, Pinóquio total, e tem muito de Tadzio [de Morte em Veneza] também. Ganimedes, o menino que é tirado da terra e levado para o céu sem nenhuma escolha e a divindade é transferida para ele e ele não tem atividade quanto a isso. Inclusive o texto da Paglia menciona o mito dele mas não me satisfaz por ela quase enobrecer essa posição, como se fosse um grande poder você ser um muso-zumbi sem consciência desintegrando o mundo moral quase sem querer, automaticamente, como se a beleza fosse uma radiação. E ela parece ver uma certa dignidade nisso, mas eu não sei se tem tanto assim, sabe? Não sei se é satisfatório ser assim no fim das contas. Mas não acho que ele existe enquanto uma coisa fixa, como um arquétipo.
ms: O espírito da época culturalmente parece ser comandado por uma ressaca da Gen Z contra a liberdade sexual e a utopia do consentimento. Apesar das críticas a um viés potencialmente reacionário dessa ressaca, muito disso parece ser uma resposta de trauma a ansiedades e perigos muito reais e factíveis. Como você entende que o Coleção de meninos mortos se insere nesse processo?
PM: Acho que o Coleção definitivamente reflete uma reação a esse processo. Eu cresci, tive minha adolescência, meu “coming-of-age”, na década de 2010, bem no auge do que sinto que foi, em geral, não só na comunidade gay, uma espécie de revolução sexual, quase um revamp não tão repaginado assim da revolução da década de 60/70 que mudou e conquistou muita coisa mas deixou muito dano colateral também, além de ter sido absorvida pelo “sistema” de forma que só reiterou de uma forma mascarada e colorida muitas das violências de antes. E acho que isso vem acontecendo de formas parecidas dessa vez. Naquela época começou um discurso, muito movido pela geração mais velha, os Millenials, que é quem tavam liderando o discurso cultural, sobre liberação sexual e positividade sexual e pornografia, pornoterrorismo, práticas desviantes, ética, consentimento, toda essa onda idealista da era Dilma que continuou como oposição ao “conservadorismo” depois que as coisas desandaram. Eu entendo que isso se deu em um cenário muito forte de homofobia e machismo e repressão sexual que essa geração viveu na adolescência deles uma década antes, mas sinto que no final foi uma ideia de liberação muito sem discussão e nuance, talvez até oportunista de alguns ângulos. Por um lado eu admiro muito vários aspectos, foi muito importante. É definitivamente mais fácil ser viado hoje em dia no Brasil. Só acho que a forma como se discute sexo ficou simples e maniqueísta demais. A gente não tem uma resposta suficiente ainda para essas questões e esse discurso que foi vendido deixou a gente, principalmente quem tava no início da sua constituição sexual na época, muito vulnerável. Sei lá, eu converso com amigos da minha idade e as histórias todas são tão parecidas. Eu sinto que eu tenho que pisar em ovos um pouco pra falar disso, porque parece que a gente ainda está um pouco preso nessa retórica da década passada e não estamos conseguindo sair. A única resposta que parece surgir é chamar a Geração Z de puritana. Mas acho que é muito mais complexo que isso.
ms: Muitas das coisas que acontecem com os seus meninos no livro, eles consentiram de alguma forma. Qual a validade desse consentimento?
PM: Eu não sei se a conversa sobre consentimento realmente leva a algum lugar. Não me parece uma forma muito inteligente de se discutir sexo. De onde esse consentimento está vindo, sabe? Você tem aquele texto O Príncipe que fala de um menino se colocando em uma posição super abjeta de degradação sexual, aí você diria: “Mas ele está fazendo isso porque ele quer, ele está consentindo, sadomasoquismo é totalmente ético se as duas partes consentirem.” Me parece muito miópico e cruel enxergar uma situação daquelas assim, mas ao mesmo tempo é complicado falar esse tipo de coisa, porque como vamos discutir isso enquanto sociedade ou comunidade e querer cercear a sexualidade das pessoas nesse sentido? Eu acho que de certa maneira você tem que assumir responsabilidade sobre as coisas, o que você faz e deixa fazerem com você, mas é complicado falar sobre responsabilidade e poder quando não se está na posição de poder propriamente. Sei lá, não sei se acredito muito em liberação sexual. Não sei se acredito muito que sexo é uma coisa que empodera ou que te salva. Desejo talvez, até “sexualidade”, talvez, mas sexo? Eu acho que é muito frustrante fazer sexo na nossa sociedade. O Coleção é um pouco pessimista em relação à possibilidade do desejo ser de fato saciado e não decepcionado vez após vez por causa do contexto, ecossistema em que está sendo posto em prática. A questão é: de que adianta liberar o sexo sem liberar o resto? Se você transa com um menino de dezesseis anos que está há cinco dias acordado foragido de casa e ele consentiu ou se uma pessoa te pede para esmurrá-la até a morte, de onde está vindo esse desejo, esse consentimento? E se você fizer o que essa pessoa está pedindo, o que isso faz de você? Você é um assassino.
ms: O consumo de meninos mortos é meio que a regra na pornografia. Fazendo uma pesquisa rápida, temos estúdios como Boy For Sale, MormonBoyz, Fun Size Boys, GayCest, Family Dick, todos esses tendo como ponto de venda a fantasia do sexo com meninos muito parecidos com o do seu livro. E essa fantasia em seu livro parece virar um terror existencial, o objeto perfeito de desejo, dotado de uma não-subjetividade, perfeitamente submisso, um buraco humano, tendo voz e forçando sua perspectiva em que está lendo. Como você pensa essa conjunção de representações?
PM: Eu acho que o livro responde e faz referência direta a esse tipo de representação. E acho que mistura ela com outras que talvez parecessem díspares ou aleatórias – você falou do Pinóquio, mas tem o Gasparzinho ali também, o Macaulay Culkin em Esqueceram de Mim, Jimmy Dean dilacerado no acidente de carro - mas que eu coloco em pé de equivalência, porque pra mim acabam sendo a mesma coisa. Ser menino morto é ser menino exposto, talvez? Acho que muita gente já fez isso antes, não acho que tem nada de tão novo em questionar o olhar do objeto sendo pornografado. Acho que ele é mais um ícone, mais um menino morto para a coleção. E ele entra nessa performance do mesmo jeito. Os meninos assistem o pornô e depois eles encenam o pornô e as pessoas pedem para eles copiarem o pornô e as pessoas projetam o pornô em cima deles. Esses meninos da tela do computador, sorrindo e morrendo, sabe? De certa forma, tem algo quase de um mito de crescimento, o menino que quando criança é Pinóquio, depois ele cresce, vira ator pornô e depois morre porque nenhum deles realmente cresce. Estão todos ali, Kyler Moss, Johnny Rapid e todos esses heróis míticos que são os nossos Ganimedes e os nossos Narcisos.
ms: Lendo o Coleção, eu tive em mente que alguns públicos, bichas e mulheres, em um recorte meio grosseiro, entenderiam em um nível muito profundo o que está sendo descrito ali, a coisa de ser olhado e o olhar te coagir e fazer agir de determinadas formas. Como você acha que o livro seria recebido por aqueles que estão realizando o olhar? Pelos algozes, por assim dizer, dos meninos mortos?
PM: Eu não sei como eles receberam, não me passa muito isso pela cabeça e não me interessa. Eu não estou escrevendo para mudar ninguém ou para pedir para alguém que não me ouve me ouvir. Talvez quando eu comecei a escrever pensei que queria fazer isso, mas depois percebi que estava muito mais interessado em ouvir as pessoas que se identificam com aquilo, outros meninos e meninas, outros buracos. Mas eu poderia pensar em alguns exemplos de “algozes”. Já tiveram pessoas – homens – que leram o livro e ficaram excitadas e me expressaram isso. Um outro cara me mandou mensagem sobre meus meninos serem assujeitados e como lendo começou a pensar sobre como objetificava os meninos de quem gostava. Que era angustiante a realização mas que meu livro o permitia encarar essa face perversa do desejo dele, e ficava grato. Ao mesmo tempo tem gente que falou que o livro as deixou com vontade de matar twinks, sabe? Então não sei se o livro é suficiente, nem se eu tenho essa responsabilidade toda. As pessoas veem o que querem ver, olham para o espelho só se quiserem. Eu acho que está bem claro o que está acontecendo nele pra quem tem que estar. Mas tem uma ambiguidade também, eu não estou discursando, nem panfletando. Eu estou apresentando os meninos. Eu não escrevi o livro para falar sobre os meninos, nem necessariamente para falar por eles. Meu interesse mesmo era apresentar eles como em uma exibição ou um inventário, e você ouvi-los falando, como se estivesse entrado sem querer numa loja de bonecos mal-assombrada. Mas eu não acho que tem algo de um discurso ou um juízo, é mais uma coisa de apresentar os meninos e descrever os meninos e de transcrever o que eles dizem.
Quando eu escrevi eu não tinha muita noção de quem ia receber esse livro e como essa recepção seria. Eu tinha medo dele ser rejeitado por homens gays, o que muito felizmente não aconteceu, porque eu escrevi o livro muito a partir de uma frustração de que muitas coisas que eu estava escrevendo ali não eram conversadas entre a gente, um tabu. Tinha uma coisa muito de relações entre homens e dinâmicas de poder entre homens, em relações homossexuais, e normalmente nesse âmbito cultural queer de discurso tem sempre aquela coisa do hétero, externo, como opressor. É a gente contra os héteros então a gente não pode discutir as relações entre a gente porque isso seria um moralismo, um conservadorismo. Heteronormativo. Um movimento de separatismo, mas um separatismo muito conveniente para certas violências. Eu acho que tem muito uma coisa de que a gente não pode deixar esses debates entrarem porque eles significariam repressão e nós como gays fomos reprimidos a vida inteira e agora estamos livres então a nossa sexualidade tem que ser livre. Mas o que é essa sexualidade livre? Eu acho que sexualidade nunca é livre, pelo menos não nessa sociedade. Sexualidade não é uma coisa leve. Eu não acredito em amor livre, eu não sou hippie. Sexo seguro não existe. Eu acho que sempre carrega um nível de violência, acho que faz parte, parte do prazer inclusive vem disso. O ato é essencialmente violento, sem querer ser dworkiniano demais (ri). É um choque entre duas pessoas, dois corpos, duas consciências. Ou mais de duas. Então nunca vai ser leve, nunca vai ser fácil. Então quando você entra com isso de consentimento, tem uma coisa de racionalismo, de tentar impor uma cartilha quase infantilizada no sexo, mas que de certa forma acaba fazendo o oposto, porque você libera tudo e qualquer coisa, contanto que nenhuma das partes diga “Não”. Eu fiquei e ainda fico muito feliz com a resposta que tenho tido ao livro por parte de outros homens gays, eu achei que talvez pudesse ser lido como uma coisa sex-negative ou reacionária, mas parece que todo mundo que tinha que entender tem entendido, e isso me deixa feliz num nível quase inexprimível.
E eu tinha um pouco de uma noção de que mulheres fossem se conectar, talvez até mais, porque do mesmo jeito que mulheres amam shonen-ai, yaoi, eu acho que elas têm uma certa sensibilidade a certas violências e certas diferenças. Quando se fala de relações gays tem muito essa ideia de que são dois homens então eles estão em pé de igualdade então o tipo de diferença e de violência que a gente vê entre homens e mulheres não estaria ali. Mas está, sabe? E eu nunca vi ninguém escrevendo e falando sobre isso, só o Dennis Cooper. Eu tinha muita dificuldade de encontrar essa perspectiva, porque eu sempre observei muito isso na minha vida, nas minhas relações e ao meu redor. O que o Júnior fala no Let’s Get Invisible quando decide inventar o “Passivismo”: “A gente tem que inventar uma palavra para as coisas que os meninos fazem com a gente mesmo sendo meninos também.”
ms: Como você encara a coisa toda de “twink” que tendem a vincular com sua obra e você como autor, quase como uma epistemologia?
PM: Ai, a figura do twink. Associam muito o “twink” comigo e o que eu escrevo, que eu sou um twink que escreve sobre twinks, que a minha poesia é uma “poesia twink”. Mas eu não estava pensando tão conscientemente em “twink” quando estava escrevendo, tanto que essa palavra nem aparece no livro, porque eu acho uma coisa meio limitada, sabe? O twink tem que ter uma certa faixa etária, altura, biotipo. Além de ser basicamente uma categoria pornô, e ter algo de desumanizador no conceito todo. Poderia falar mais sobre, mas deixa pra outra hora. Eu estava tentando achar uma certa iconografia masculina, homo, pueril, que não tem necessariamente a ver com um tipo de corpo específico. Mas, bem, como eu sempre tive esse tipo de corpo, e talvez, admito, nas minhas escolhas visuais no Instagram e tal acabe indo pra esse imaginário mesmo, acabou colando, e acolhi. Acho que como escritor, artista em geral, tem coisas que os outros veem na sua obra e em você que você não necessariamente vê como algo tão marcante, mas às vezes são certeiras, e não adianta brigar. O meme todo da ‘morte twink” surgiu bem na época que eu estava dando forma ao livro, né, então acho que a conexão deve estar ali sim. Importante não se levar muito a sério. Eu acho engraçado.
ms: Uma leitura muito fácil do livro é de que ele é uma literatura confessional ou autobiográfica. Como você navega entre os territórios da ficção, verdade e autoficção em sua escrita e os limites que as pessoas borram quando elas vão lidar com você?
PM: Eu acho que eu provoco isso, então não acho que é algo que posso dizer “ai que chato, não quero que ninguém fale de mim, as pessoas estão se intrometendo na minha vida pessoal, não tem nada a ver comigo blábláblá”. Me interessa a autoficção. Me interessa borrar esses limites. Por mais que obviamente os poemas não sejam exatamente sobre mim, acho que nunca são sobre você, pra mim a escrita é sempre um negócio performático, a partir do momento que você começa a escrever deixa de ser você. Mas também acho desonesto isso de “ah não tem nada a ver comigo”, talvez eu use isso alguma hora quando não quiser responder algo (ri). Mas não é verdade, sabe? Eu acho que obviamente eu estou ali, também. Mas não chamaria o livro de confessional. Recentemente uma pessoa me descreveu o livro como conceitual, como se cada poema estivesse respondendo ao título. E isso me ajudou até a pensar a linguagem do livro, porque tem escolhas que eu faço com a linguagem, a forma que eu rimo ou que escrevo, quase usando um formato de “nursery rhyme” em momentos, uma coisa Ou Isto Ou Aquilo, pra dar a ideia de um menino aprendendo a escrever, aprendendo a falar. Eu acho que se estivesse escrevendo algo mais propriamente confessional eu usaria uma linguagem menos infantil, a linguagem seria bem diferente. Mas ao mesmo tempo eu provoco intencionalmente essa confusão, eu coloco datas de diário ali, misturo detalhes super autobiográficos com invenções, quase como se misturaria tintas ou texturas, é uma coisa que está ali e está presente. Eu acho que se relaciona com os questionamentos do livro sobre subjetividade e objetificação, o que é verdade e o que não é, o que é esse menino de verdade, o menino de verdade que não é o menino de verdade, é o Minet e é o menino do livro. É muito sobre estar sempre brincando como uma criança em um labirinto de espelho, estar sempre borrando as coisas e brincando com essas convenções que a maravilhosa arte da literatura dá pra gente.
ms: E como você lida com a parassocialidade que a autoficção alimenta?
PM: Não é fácil, é bem esquizofrênico, tenho que admitir. É o preço que você tem que pagar de certa forma. Eu não tenho purismo em relação a essas coisas. A autoficção é a moda du jour precisamente porque estamos em um momento de mercantilizar os nossos corpos e identidades a todo vapor, e todo mundo é uma celebridade e está exposto e fragmentado nas redes sociais. Eu não gosto de ficar choramingando, é algo que eu comecei a fazer sabendo do efeito que provocaria e que chamaria atenção e atrairia essa projeção. Agora eu estou me sentindo meio Mágico de Oz, abrindo a cortina. Não é fácil, às vezes eu me sinto meio Perfect Blue porque as pessoas projetam muitas coisas. De certa forma eu sinto que eu convido isso, mas ao mesmo tempo às vezes acho que eu não estou fazendo e as pessoas acham que estou. Acho que requer uma certa personalidade e disposição, que felizmente eu tenho. Mas não quer dizer que não seja difícil. Eu faço coisas para me proteger e resguardar, eu poderia me expor bem mais. Não sei, acho que é interessante o jeito que as pessoas falam de mim. Eu tenho amigos que eu conheci ao vivo nos últimos meses e falaram “eu achei que você nem era de verdade”, brincando que eu “não existo”. O que de certa forma é uma coisa horrível de se dizer para alguém, mas tem uma proteção em ser assim, talvez, esse mistério, essa coisa de ser “it boy” e low profile ao mesmo tempo. É uma coisa que requer muita disciplina. Mas eu me divirto também, sabe? De certa forma se entrelaça, quase que faz parte do livro. Eu acabo sendo um dos meninos mortos também, ou todos, que nem a Chaka Khan (ri).
ms: Em termos de uma tradição literária homossexual, ou queer, o Brasil é basicamente anêmico quando você compara com os EUA, a Europa ou o resto da LatAm, principalmente em comparação com a Argentina.
PM: É Caio Fernando de Abreu e companhia. E o Lúcio Cardoso.
ms: De que tradições literárias você conseguiu inspiração e/ou buscou se inserir?
PM: Na minha (ri).
ms: A resposta do narcisista.
PM: Eu li Morangos Mofados do CFA quando eu era bem jovem, foi muito importante para mim, quando eu tinha uns 12 anos. Mas não é alguém em quem penso muito hoje em dia. Honestamente, eu não sei se penso muito nisso de tradição queer, algumas das minhas maiores influências não são queer, tipo o Baudelaire. Baudelaire é queer? Não sei se consigo ou faço questão de me inserir em uma tradição queer, pelo menos não literária.
ms: Mas eu acho que “na minha” é uma ótima resposta.
PM: Não sei, acho que soa meio grosseiro. Mas é um pouco isso. Não vou dizer que não tem ninguém que faça o que eu faço, obviamente tem gente que me influencia, muitas pessoas. Mas eu não consigo pensar em uma tradição para me inserir, principalmente no que está acontecendo ou já aconteceu na literatura brasileira, se é que está acontecendo alguma coisa. Já li Piva, Mattoso, Faustino, Noll. Não consigo enxergar eles como antecessores. Se você for ler o “Antinous” do Cardoso, é meio que o oposto do que eu faço. Aquela poesia de erastes. Mas gosto de muita coisa do cara. Esses dias me disseram que o Álvares de Azevedo foi o “primeiro menino morto”. Meu escritor brasileiro favorito é de longe o Nelson Rodrigues. Ele é queer? Falando de quem me influenciou, em termos de tradição, já me chamaram de neodecadentista. Será? Eu gosto de Baudelaire, Sade, Genet, Blake, Duras, Acker, Klossowski. Os chamados “transgressores”, malditos, sei lá, apesar de achar meio cafona e dépassé a denominação. Minha principal influência, talvez não em termos de linguagem, mas de construção de universo, é o Dennis Cooper. Eu sinto que eu sou um pouco filho dele, no sentido de que ele criou um certo universo, assim como Deus (ri), ele deu nome às coisas, ele criou as imagens às quais a gente, no caso eu, pudesse responder e interagir, pelo menos nesse sentido de literatura gay, até onde me identifico. Quando eu li Dennis Cooper a primeira vez aos 16 foi uma revelação para mim porque eu nunca tinha visto ninguém escrever e descrever aqueles tipos de dinâmicas, relações e imagens. Os personagens e símbolos que ele constrói, esses twinks, essas relações entre homens que eu só vi sendo descritas da forma que ele descreve em livros heterossexuais – ele escreve como se fosse um Kawabata gay. De certa forma eu sinto que a minha escrita é uma resposta à dele, porque ele tende a partir da perspectiva do homem-que-quer-devorar-meninos, apesar de ser profundamente empático com as “vítimas” e tal. Lendo os livros dele sempre senti uma identificação surreal, um “contemplamento” sem igual mesmo, mas ao mesmo tempo uma ânsia, um ímpeto de mexer e reordenar, adicionar, algo de sentir que a história completa não estava sendo contada. Mas é um confronto produtivo, uma coisa de troca e diálogo mesmo, como a Irigaray faz nos livros dela com os filósofos que ela ama mas não veem ela como gente. Não que o Dennis não me veja como gente, ele foi um amor todas as vezes que conversamos online. Acho que o Dennis, ou o “eu-lírico” dele, tem quase um complexo de Madonna-Whore com twinks, que acho fascinante, e já até questionei ele sobre uma vez. Ele gostou.
ms: Na sua escrita você utiliza elementos de colagem, remixagem, fragmentação e repetição. Rio Sul Shopping Center é o meu exemplo favorito disso, que traz o comercial do Rio Sul, traz a música de Utena Revolutionary Girl e entrelaça isso com a história de alguns dos meninos mortos. Como essas técnicas contribuem para o projeto estético do Coleção?
PM: Eu aprendi a fazer cut-up lendo William Burroughs e Kathy Acker, eu acho que o Rio Sul Shopping Center tem um aspecto muito específico e declarado ali que é uma tentativa de entender o que seria um flaneurismo literário contemporâneo, que desse conta da forma como a gente experiencia e observa o espaço público hoje em dia e nos colocamos nele. Como você retrata um ambiente? Basta você só descrever as coisas que vê, como um Baudelaire ou João do Rio faria? Desligar o celular e observar? Mas o celular faz parte do ambiente, do seu corpo enquanto você percorre, tanta coisa imaterial e não imediatamente palpável faz um ambiente ser o que ele é. Por isso ali entre listagens cruas de objetos e situações sendo presenciadas e imaginadas em tempo real enquanto o menino anda pelo shopping, diálogos entreouvidos em praças de alimentação, você tem comerciais antigos do Rio Sul recortados, mensagens de texto e letras de música que interrompem e dialogam com os pensamentos do eu lírico, minicontos sobre passantes e voyeurs, seções inteiras apropriadas e parodiadas de O Spleen de Paris e A Alma Encantadora das Ruas. O menino que está escrevendo o poema, porque o poema é apresentado na introdução como um trabalho escolar, está quase tentando fazer uma “psicogeografia” daquele lugar, à la Debord, e refletindo sobre o processo durante. No sentido do Coleção como um todo, essa técnica do cut-up, para além da coisa toda de questionar realidade, subjetividade e ilustrar essa consciência esquizo pós-capitalista que era a proposta do Burroughs e da Acker, no caso dela com toda uma investigação sobre patriarcado e descentralização, écriture feminine e que dialoga bastante com o que faço. Para além disso, é muito sobre refletir a fragmentação dos meninos, essas consciências meio que incompletas, intercortadas por sombras alheias. Nesse poema mesmo, aquele trecho: “meninos que gostam tanto de espelhos que já viraram espelhos”. Uma coisa meio de construir um corpo a partir dessa refração, de cacos partidos.
ms: Você tem uma presença online muito bem curada e trabalhada, na qual uma persona artística é projetada mas com ares de it boy. Essa autocuradoria e exposição é algo que o artista precisa fazer atualmente?
PM: Talvez precise, eu senti que eu precisava.
ms: O Pedro Minet é mais celebridade que escritor?
PM: Você me lisonjeia. Eu acho que as coisas estão interligadas né, eu escrevo sobre o tipo de coisa que acho que minha presença online exemplifica. De certa forma faz parte do projeto, faz sentido para o meu projeto. Mas essa coisa de “it boy” não foi uma coisa que eu fui exatamente na intenção lá atrás. Eu queria que as pessoas lessem o que eu escrevia, que as pessoas se sentissem atraídas por mim e pelo meu Instagram. E eu sei como as coisas funcionam, que hoje em dia não adianta nada você só escrever bem. Nunca adiantou, mas se você quer atrair um certo público que você quer atrair você precisa jogar o jogo e entender como fazer isso de forma que faça sentido para você e adicione à sua obra. Apesar de isso ser uma coisa meio impossível e de certa forma você vai estar sempre brincando com fogo, é preciso fazer certas coisas para atrair atenção. Depois de um tempo acabou tomando vida própria um pouco; eu acho que a coisa do it boy as pessoas começaram a projetar em mim e eu fui na onda porque queria ser lido, e porque é um pouco divertido mesmo. E eu estava tentando chegar em homens gays, então tinha que tirar a roupa.
ms: No seu Instagram você construiu uma espécie de acompanhante visual ao seu livro, no qual nós podemos visualizar a estética do seu trabalho de forma mais imediata, com a presença de referências do cinema japonês e figuras como James Dean e Björn Andrésen. Como esse imaginário é construído e como ele vai ser construído no futuro?
PM: Essas referências estão comigo há muito tempo, é algo que eu venho construindo há muito tempo e são coisas que vão além do livro. Desde a época que eu usava Tumblr. Acho que isso vale pra muitos artistas cronicamente online da minha geração, mas o tempo que eu passei no Tumblr na adolescência foi formativo demais. Eu era um dos poucos meninos que faziam parte daquelas comunidades “nymphette”, que acabaram virando “coquette” com o tempo. A gente ouvia Lana del Rey e lia Lolita e Call Me By Your Name e ficava fantasiando com homens mais velhos e conversando sobre ter sido molestado aos cinco anos de idade (ri). E tinha toda uma subcomunidade de meninos gays, cis e trans, trocando experiências, postando fotos de nossas roupas, buscando e compartilhando referências; foi aí que começou a se formar o “minetcore”. Era muito sobre tentar, mais do que só falar sobre nossas experiências, nos inspirar no estilo uns dos outros, processar nossos traumas -- tinha uma coisa ali que eu reconheço muito forte hoje em dia, de que estávamos tentando delinear e construir uma nova masculinidade. Acho que tem a ver não só com ilustrar o universo que eu construo com o meu livro, mas com a forma como me enxergo também, me visto. Essa figura masculina que eu identifico com o James Dean, e o Bjorn e Eddie Furlong e Pink Narcissus, todos esses twinks e meninos andróginos que eu projeto, um certo dispensativo de performance de gênero que não existe muito, pelo menos não no ocidente. É uma coisa de expressar um masculino que é feminino mas ainda assim é masculino. Acho que transcendeu o próprio Coleção, já virou uma estética que associam comigo e tudo que faço num geral.
Você falou do Bjorn agora, eu referenciei ele tantas vezes nessa conversa. Acho que o Tadzio, não só o do livro, mas sua incorporação pelo Bjorn – o “menino mais lindo do mundo”, primeiro bishonen, assombrado pelo personagem a vida toda – é o menino morto original, ou o suprassumo. Esse menino em que tudo é projetado, e nunca fala. É o menino que está de férias com a família e acaba virando esse anjo da morte pra maricona do Aschenbach e você fica se questionando se ele é só um menino sendo perseguido por uma maricona ou se realmente é um anjo da morte que veio punir e exterminá-la. De qualquer forma a maricona morre, olhando para ele. Aí você se pergunta: ele matou a maricona? De certa forma ele matou, mas será que ele sabia o que estava fazendo, que ele tinha esse poder? Será que ele queria esse poder – que é um baita poder, o poder de matar mariconas inconvenientes – ou só queria passar as férias em paz? Não sei, ele não fala nada. Ele é meio que a Lolita gay, né.
ms: Além disso, no seu perfil, temos a presença também de várias obras de IA com motifs de decadência, juventude, beleza e violência. De que forma você entende essa produção dentro da sua construção de persona e da sua obra de modo geral?
PM: A IA na verdade foi algo que eu fiz durante uma época mais como brincadeira, quando saiu o MidJourney em dezembro de 2022, só me divertindo no Discord mesmo e criando atrocidades. Eu fiquei meio obcecado com as pessoas terem decidido que era a pior coisa do mundo, apesar de agora estarem voltando um pouco atrás. Sou meio do contra, que nem um fedelho, às vezes. Não me interessou muito fazer aquelas coisas fotorrealistas, character art de anime, algo tentando emular o que seria “arte de verdade”, acho isso tudo muito feio e cafona. Eu queria era fazer as aberrações mais uncanny que pudesse, uma coisa meio Ryan Trecartin, e acho que foi meio que um ensaio pra começar a ilustrar o Coleção depois que ele foi lançado, de certa forma. Porque se você olhar o que foi produzido, eram basicamente repetições bem esquizofrênicas de meninos sendo olhados por outros meninos, refletidos em pôsteres, reflexos infinitos, vestidos de príncipes se prostituindo em Los Angeles, tramando revoluções contra velhotes com a cara suja de bosta em iates em Cannes. O que me interessou no IA foi o que as pessoas falaram que era ruim, que é o negócio de “não ter alma”. E ao invés de trazer alma para o IA, deixei ele trabalhar nessa falta de alma. Fazer reflexos infinitos, labirintos de espelhos, meninos ocos, fantasmas, robôs, child stars mutilados em tapetes vermelhos. Que de certa forma são os meninos do livro. IA é algo que me interessa mas eu não faço mais, há um bom tempo. Tenho um pouco de medo, tenho muitos amigos amados que são artistas e não quero invocar a ira deles (ri). Entendo que tem questões éticas, e tal. Prefiro ficar de fora, no meu cantinho, por enquanto. Mas tem gente fazendo coisas que acho incríveis com a ferramenta, como o @geelherme, que é um grande colecionador de meninos mortos que nem eu. Vejo muito diálogo da minha obra com o que ele faz. Sou muito fã.
ms: Por último, quando seria permitido a um de seus meninos viver?
PM: The answer, my friend, is blowing in the wind…











